A realidade filtrada ou por que você acha que está sempre certo
date
Oct 1, 2013
slug
2013-a-realidade-filtrada-ou-por-que-voce-acha-que-esta-sempre-certo
status
Published
tags
debate
realidade
fatos
type
Post
ogImage
summary
A realidade filtrada: o perigo da personalização digital e a polarização política na sociedade democrática.
Uma democracia só se constrói com desacordo, discussão e confronto de ideias. Essa é uma das premissas em cima das quais uma imprensa forte e independente é fator sine qua non nas sociedades democráticas. Países que têm uma imprensa com origens estatais ou altamente dependente dos favores do Estado ou establishment estão acorrentados ao poço de lama fétida que é o autoritarismo mais ou menos explícito, com variações distintas indo de ditaduras absolutas (como a Arábia Saudita) até democracias disfuncionais como Brasil, Índia ou México. E a tendência é que o quadro piore com um recurso que raramente é visto como negativo - a personalização, ou como batizou o autor Eli Parisier, a “bolha de filtros” ou Filter Bubble. Talvez você ache que cada vez mais sua opinião é a mais sensata, mas provavelmente você simplesmente está tendo acesso à realidade na qual você gasta mais e fica mais satisfeito - e ela está incrivelmente longe da verdade.
O estímulo da discussão como construtor de conhecimento é um conceito que tem uma fundação na realidade religiosa do fim da Idade Média, quando um cara chamado Martinho Lutero percebeu que a venda de perdões pela Igreja Católica era coisa de canalhas. O rompimento protestante não mudou somente o viés da religião - ele também cimentou o rumo diferente que todo o conhecimento teria nas sociedades ocidentais cristãs não-católicas. O desafio ao conhecimento vigente é estimulado nos países onde o cristianismo mudou de cor após a Reforma Protestante e condenado nos países católicos, onde o conhecimento era monopolizado pela Igreja, e as vozes dissonantes normalmente acabavam silenciando-se nas fogueiras ou espadas, onde incluíam-se todos os não-cristãos.
A exemplo da cultura judaica (primeiro povo da história a erradicar o analfabetismo), os países que se divorciaram de Roma e do Vaticano tinham condições muito mais favoráveis para o debate e, consequentemente para a ciência. “Se consegui ver mais longe foi porque subi no ombro de gigantes”, afirmou Isaac Newton, numa afirmação muito didática do raciocínio por trás da construção de sabedoria científica. Esse mindset se perpetuou e não é coincidência que os primeiros jornais do mundo tenham florescido na trilha aberta por Lutero. As democracias sem dúvida levaram décadas de sangue e luta para se construir, mas nenhuma das disputas fundamentais deixou de ser debatida por antagonistas que vieram a conhecer profundamente as teses de seus adversários. De Marx a McLuhan e muitos após ele, todos os pensadores que fizeram contribuição à humanidade submergiram nas ideias que confrontavam para lapidar suas próprias reflexões, um aprimoramento intelectual semelhante à evolução darwiniana.
Se a mídia digital traz consigo um risco grande não é o de “pirataria”, cartelização, falsos dilemas morais ou “excesso de liberdade” (se é que tal coisa existe). O risco que corremos é o de nos isolarmos em bolhas customizadas de consumo e conhecimento, com os filtros sendo determinados pelo modo que gastamos nosso dinheiro e “curtimos” coisas.
Personalização é a chave-mestra da experiência de 10 entre 10 produtos de tecnologia e, como com qualquer tecnologia, não é ruim em si, mas carrega a semente da evolução e do caos. Cada vez mais podemos evitar assuntos desagradáveis, ideias incômodas, provocações, notícias desconfortáveis e dezenas de outras coisas que despertam culpa, raiva, frustração, desespero, tristeza. A personalização pode tanto nos deixar em contato com tudo o que precisamos saber ou nos colocar dentro da Matrix de William Gibson e dos Wachowski Brothers, onde podemos viver nossa vida sem perceber que a SUV nova custou a vida de um operário num país distante. Nosso DNA digital está sendo programado a cada clique. As consequências disso podem ser desastrosas.
O desastre aí não vem na forma da destruição de uma indústria como a de conteúdo (uma mentira que Hollywood e as grandes gravadoras tentam pregar desde tempos antediluvianos), nem no fim dos jornais impressos, cuja perdição é culpa quase exclusiva de sua miopia egoísta, falta de visão, corporativismo e completo descolamento do papel que tem na sociedade. O desastre é individual. Frequentemente padrões humanos e sociais reproduzem adaptações de padrões biológicos. Assim como na natureza, onde a miscigenação racial sempre foi um apoio para o refinamento da espécie, no novo mundo digital, as experiências digitais ultrapersonalizadas estão enclausurando pessoas e grupos em guetos nos quais a reprodução de características leva a distorções e indivíduos problemáticos.
Quando o Google decidiu pela personalização dos resultados de sua busca segundo os interesses comuns de cada usuário, estava tentando oferecer as melhores respostas para cada busca. A empresa, que ao lado da Apple e do Facebook são as verdadeiras forças motrizes da pesquisa científica em comunicação no século XXI, certamente não imaginava que a personalização dos seus algoritmos levaria à criação de silos de conhecimento, assim como nenhum dos concorrentes que também apostou no desenvolvimento de experiências exclusivas para cada usuário. Mas o fato é que nunca, em tempos democráticos, o Ocidente teve sua população tão polarizada politicamente.
O trabalho da imprensa é central nessa questão. Estudos de economia sugerem que, historicamente, os jornais de uma maneira geral tendem a se posicionar à esquerda do centro por uma questão de mercado e não de postura. Sociedades saudáveis certamente seguiram essa tendência. A lógica de oposição sistemática é burra na política, mas obrigatória no jornalismo. Não interessa quem esteja no poder - o necessário é dizer ao leitor o que ele precisa saber a respeito. Jornais promoviam ideias de diversos grupos e estimulavam o debate. Eles forneciam ao leitor o insumo para discussão e, em muitos casos, contrariavam o leitor. Esse leitor não comprava só informação. Comprava também um percentual de cidadania.
Nas últimas duas décadas do século passado e na primeira do século XXI, contudo, os jornais compraram a ideia de que basicamente lidavam com um produto que tinha de atender a exigências de mercado. Grandes corporações compraram jornais menores e hoje a concentração da propriedade de mídia nos Estados Unidos só não é maior do que a bancária (onde 80% dos bancos pertencem a 10 grupos). O leitor foi tratado cada vez mais como cliente. Conforme as receitas dos jornais foram secando, o leitor foi ficando cada vez mais cliente e quando isso ocorre, não há jornalismo.
O digital e a ultrapersonalização só agravaram esse quadro. Quando o Google entrega um resultado diferente numa busca igual porque os usuários têm visões políticas opostas, ele está otimizando seu próprio produto e sendo mais eficiente. Porém, ele está também isolando cada vez mais cada usuário dentro de sua redoma. Um professor da Universidade de Maryland argumenta que a fragilização dos jornais e o acesso digital onipresente são duas das razões mais relevantes no radicalismo do quadro político americano, onde um presidente não governa com maioria no Congresso e Senado desde 1995. Mas o fenômeno se repete em praticamente todas as democracias que agora estão cada vez mais parecidas. Como dizia o político brasileiro do Império, Holanda Cavalcanti, “nada é mais parecido com um conservador do que um liberal no poder”.
O debate nas redes sociais segue o mesmo padrão com raros lampejos de mudança. Oposicionistas hidrofóbicos e governistas fanáticos compartilham as mesmas coisas somente com as pessoas com quem têm identidade e muito, muito raramente, a discussão virtual ganha a dimensão que deveria ter - aquela capaz de gerar conhecimento e sabedoria nova, a mesma que fez Newton subir nos ombros dos gigantes. O Brasil reproduz bem o deadlock que trava o cenário político com um governo e uma oposição corruptos que são reproduções fieis de si mesmos, desde o discurso modernizador até as justificativas pelas ocasiões nas quais foram flagrados fazendo o que fazem melhor: drenando o sangue público.
A personalização não é a responsável pelos atropelamentos políticos, da mesma forma que o vinho não é a causa do alcoolismo. A sociedade é. O grande drama no momento é conseguir fazer com que os demagogos e hipócritas que levam vantagem com essa radicalização sejam desmascarados a tempo de se evitar o pior. Isso raramente acontece, mas acontece cedo ou tarde.