A hiperconectividade derruba a cobertura vazia das TVs nos protestos

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Jun 23, 2013
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Hyperconnectivity exposes media bias and challenges traditional coverage of protests in Brazil.
Trinta anos atrás, o Brasil assistiu a maior mobilização da sociedade pós-golpe com o pedido de eleições diretas para presidente. Naquela época, mesmo já trabalhando sem censura na prática, o país não teve a real noção da extensão do movimento. Já a maior emissora de TV do país, a Rede Globo maquiou a cobertura a ponto de seus profissionais serem ameaçados nas ruas e a empresa ter equipamento e veículos danificados pelos participantes dos comícios que eram sempre subdimensionados pela sua cobertura. Três décadas se passaram e a parcialidade jornalística voltou à tona em praticamente todas as emissoras, mostrando as passeatas que ocorrem pelo país primeiro com descaso e depois com um tom fortemente reprovatório, insistindo em chamar a atenção aos “baderneiros”.
Mas agora a TV, mesmo poderosa como é, caiu do cavalo, ao subestimar o novo nível de conectividade da audiência. A mídia mostra uma realidade paralela, tentando atender suas conveniências, mas não consegue emplacá-la. Os meios digitais disseminaram a informação e as emissoras fingiram que o rei não está nu só para elas mesmas. Ninguém mais acreditou.
Embora as emissoras tenham incorrido no mesmo erro, a Rede Globo é a que corre o maior risco, por ser a mais interessada no bom andamento da Copa das Confederações, competição que faz parte dos seus nababescos pacotes de patrocínio para a Copa do Mundo, estimados em mais de R$1 bilhão. O tom da cobertura global deu o ritmo para as outras empresas de mídia: uma cobertura conservadora que apontava os manifestantes sob uma luz menos engrandecedora, para dizer o mínimo. A decisão revelou-se um desastre de relações públicas. Na última segunda-feira, a emissora dividia com os governos dos três níveis - municipal, estadual e federal - os alvos dos gritos de guerra dos manifestantes nas ruas. O desconforto foi grande o suficiente para que a apresentadora do Jornal Nacional, Patricia Poeta, apresentasse a posição “oficial” da Globo, defendendo o tom de sua cobertura até então.
A menção da emissora ao problema já foi surpreendente e deve ter sido tomada quando o protesto que veio pela Avenida Faria Lima em São Paulo se aproximava até a Av. Luis Carlos Berrini, onde ficam os estúdios nos quais se apresenta o Jornal Nacional, em SP. O mal-estar não ficou só no desconforto. Repórteres da Globo foram hostilizados nas ruase até o veterano e respeitado repórter Caco Barcelos chegou a ser expulso de um dos protestos, num injustificável - porém não surpreendente - ato de intimidação. Daí em diante, nenhum outro repórter da emissora fez seu trabalho do meio da multidão usando as identificações da empresa: ou a reportagem era feita de uma distância segura ou os jornalistas escalados para se misturarem aos manifestantes não carregavam nenhuma identificação e, não raro, trabalhavam sozinhos com câmeras portáteis. Com o decorrer da cobertura, primeiro a Globo News, o canal de rolling news a cabo do grupo, passou a usar mais e mais imagens captadas por freelancers e depois até o próprio Jornal Nacional fez uso de vídeos produzidos por colaboradores. Alguns dias depois, o canal a cabo aumentou a exposição dos vídeos amadores, solicitando aos telespectadores que fizessem imagens e enviassem a título de “colaboração'.
Há alguns pontos digníssimos de nota. Primeiro, a empresa sentiu o baque e está na defensiva com um temor compreensível de ter um de seus profissionais ferido pelos manifestantes (um deles já acabou ferido por um tiro de bala de borracha.); segundo, a direção de seu jornalismo teve o bom senso parcial de não ignorar o tamanho do movimento, mas ainda está vivenciando um divórcio da realidade (na segunda-feira, enquanto o país vivia seus maiores protestos em 20 anos, Galvão Bueno recebia seus convidados no Bem Amigos num tom de absoluta normalidade); terceiro, consciente de que sua cobertura está incompleta sem a presença dos repórteres no olho do furacão, a empresa decidiu por uma política mais agressiva de crowdsourcing, inédita até então, solicitando conteúdo aos seus telespectadores; quarto, ficou crasso para audiência e emissora que as informações de quão gigantescos eram os eventos chegaram ao público de maneira absoluta, independentemente do boicote ou não da mídia ao que estava acontecendo. A escolha da emissora então foi o de fazer a cobertura dos protestos, sempre mencionando o caráter pacífico dos mesmos mas dando destaque absoluto aos vandalismos e saques, exageradamente usando os termos “arruaceiros”, “baderneiros”, “vândalos” e sinônimos.
As outras emissoras não merecem melhor luz na qualidade de suas coberturas. Luiz Carlos Datena e seu programa Brasil Urgente foram até protagonistas de um constrangedor “recado” da audiência, quando o apresentador tentou - e fracassou retumbantemente - influenciar a escolha do público em relação à legitimidade dos protestos. Noutro 'genérico' policialesco, o Cidade Alerta, da Record, a falta de imagens de violência na megapasseata da segunda-feira, 17/6, fez com que o apresentador Marcelo Resende ficasse chamando imagens da passeata ocorrida na quinta anterior, onde houve confronto com a polícia. Datena e Resende também assumiram a postura de destaque para os atos de vandalismo. O problema é que taal postura foi condenada amplamente pela audiência. Uma das poucas vozes na grande mídia a falar com todas as letras que os saques e depredações eram irrelevantes diante da proporção das manifestações foi um 'editorial' do jornalista Ricardo Boechat, na rádio Band.
A cobertura das manifestações deixou claro para as empresas jornalísticas que elas perderam completamente o poder de 'esconder' eventos de uma determinada proporção e limitou muito sua capacidade de manipular a opinião pública. Isso não significa que a 'cobertura' oferecida nas redes sociais esteja substituindo o jornalismo - longe disso. Hoaxes circularam freneticamente no Twitter e no Facebook, carregando desde o uso de vídeos e imagens descontextualizados, mas reais, até acusações sérias citando nomes e lugares sem nenhum fundamento. Uma colunista de um jornal de São Paulo chegou a dar o nome do responsável por atos de vandalismo na Prefeitura de São Paulo, citando “fontes” ligadas à prefeitura. Horas depois, o verdadeiro responsável foi preso e até onde eu saiba, não houve uma retratação por parte da colunista.
O que realmente sofreu uma mudança de eixo foi na capilaridade da informação. As mídias tradicionais sempre tiveram sob controle gigantescos hubs, gargalos por onde passava a quase totalidade da informação, sem os quais era muito difícil uma informação se viralizar. Na nova ordem, a situação é diametralmente oposta, sendo difícil exatamente o contrário - manter a informação dentro de um sistema que possibilite a sua apuração para evitar a disseminação de inverdades que podem ter conseqüências devastadoras. Num país como o Brasil, onde a imprensa é pró-governo desde sua origem e onde meia dúzia de grupos detém quase a totalidade dos meios de comunicação em massa, essa fragmentação tem desdobramentos extraordinários, não só para a sociedade, mas principalmente para as diretrizes de como a mídia tem de se comportar a partir de agora.
Como as manifestações não dão nenhum sinal de que devem se encerrar num período breve, seria de extrema conveniência que as empresas de notícia revisassem emergencialmente suas políticas e suas estratégias. A população mais esclarecida já se apoderou dos meios necessários para superar quaisquer barreiras impostas por TVs e jornais e essa divergência entre o mundo real e o cenário apresentado pela mídia, certamente há um grande prejuízo para a credibilidade das mesmas.
Essa tomada de consciência tende a se aprofundar nos próximos dias e o resultado final é que o processo de troca no eixo do poder entre as mídias sofra uma aceleração, cuja proporção é impossível de prever. O tom talvez possa parecer sensacionalista, mas a verdade é que os acontecimentos no Brasil são de uma magnitude inédita e todo o seu ambiente de comunicação passa pelo primeiro evento submetido à hiperconexão digital, via blogs, redes sociais e variantes. Há um potencial terremoto de 9 graus na escala Richter que pode acontecer a qualquer momento. Conforme o tempo passa, as medidas que a mídia tem ao seu dispor vão se tornando mais difíceis e menos eficientes.

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