A semana em que Marco Feliciano mandou na sua Web

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Sep 5, 2016
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Se era para fazer a seleção das pessoas menos críveis para tratar de Internet, parabéns: não tinha como piorar.
É bem pouco provável que você saiba que na última quarta-feira o Marco Civil da Internet sofreu seu primeiro teste legal com a votação do relatório da CPI Ciber, uma investigação do Congresso que tinha os crimes cibernéticos como assunto. A proposta da CPI era investigar “os crimes cibernéticos e efeitos deletérios para a economia do país”. A vagueza da proposta somada ao elenco de parlamentares envolvidos (Marco Feliciano - PSC-SP, Arnaldo Faria de Sá - PTB-SP, Esperidião Amin - PP - SC, Subtenente Gonzaga - PDT - MG, Delegado Éder Mauro - PSD - PA) são ingredientes de uma trama que pode definitivamente atingir você - até mesmo para ler este texto. O pastor do PSC, vice-presidente da CPI, foi irrelevante na comissão, mas revela como as coisas estão fora da ordem no Brasil. A raposa tomou conta do galinheiro e se ainda não fez a festa, é porque ainda não percebeu que pode - mas perceberá.
O argumento para justificar a CPI não é irrelevante. Um desvio de dinheiro estimado em cerca de R$2 milhões em 2014 abriu espaço para a discussão sob a alegação de proteger a sociedade desse novo tipo de crime (“novo”, segundo os congressistas, claro, uma vez que a fraude eletrônica não nasceu em 2014). Mas no Brasil, naturalmente o Estado não podia deixar barato e a CPI reuniu um time cuja inaptidão para avaliar a questão ainda maior do que o desfile de analfabetismo legal que vimos entre os inquiridores do impeachment da presidente Dilma. O relatório não virou lei, mas um projeto que vai ser votado no plenário e o gancho pertinente que originou a CPI naturalmente foi fagocitado por lobistas e interesses localizados.
A quantidade de documentos avaliada na CPI foi bizarramente pobre. Alguns atores importantes como a Electronic Frontier Foundation e do Comitê Gestor da Internet no Brasil mandaram colaborações consistentes e precisas, mas de um modo geral a bibliografia foi ínfima e sem nenhum tipo de análise técnica. “Eu vi muita gritaria e ataques verbais durante as sessões, mas não me lembro de ter visto nenhum tipo de argumentação técnica, nem legal e nem de tecnologia”, afirmou Katitza Rodriguez, diretora internacional de direitos da Electronic Frontier Foundation (EFF). “O tom foi raso e achamos que o relatório final abre espaço para muitas preocupações”, disse.
Durante a duração da CPI, lobistas da MPAA [o tanque de guerra do lobby hollywoodiano] marcaram presença fornecendo documentos e estudos que justificariam a adoção de medidas mais duras. Um diretor da entidade teria até mesmo vindo ao Brasil por conta da votação que foi “silenciada” pelo barulho ensurdecedor do MMA ao redor do impeachment. A Frente Nacional de Combate à Pirataria, ONG brasileira que combate a “pirataria” (entre aspas, porque a definição de pirataria é bastante relativa), foi outra organização atuante da conquista de corações e mentes.
Os reuniões e entrevistas, por outro lado, foram amplas. Além de diversos representantes de entidades de segurança pública, as 56 reuniões da comissão ouviram mais de 100 pessoas, incluindo também personagens de organizações não-governamentais, advogados, especialistas em segurança, executivos de empresas que atuam em setores onde o crime eletrônico é mais significante.
Se você não está preocupado, por favor, repense. O relatório final, aprovado por 17 votos a 6 ( PT, PCdoB, PTB e Rede recomendaram a rejeição do texto), é de uma pobreza de argumentos franciscana e em suas mal acabadas linhas, ocupa espaços omissos no princípio geral do Marco Civil da Internet, lei que garante a neutralidade de rede e preserva a arquitetura de informação que torna a Web democrática e garante a privacidade do usuário.
O projeto de lei que seguirá para ser votado situa a Internet como uma ferramenta criminosa que precisa ser controlada e deixa aberta a possibilidades de se tirar do ar tanto sites quando aplicativos. Em última instância, um juiz obscuro e desimportante como o magistrado de Lagarto (SE) que bloqueou o WhatsApp, um serviço utilizado por dezenas de milhões de pessoas diariamente é a epítome do viés autoritário. Como de hábito, o texto do - agora - projeto de lei se aproveita de “vazios” na lei, tão típicos de regimes onde a lei é normativa e não consuetudinária (ou seja, aqui, “se não está no papel, não é lei”). Imagine o governo fechando uma indústria de facas depois que uma pessoa for esfaqueada. O raciocínio “criminalizante” por trás da lei é bem parecido.
O autor da proposta de se bloquear aplicativos, serviços ou sites, deputado Sandro Alex (PSD-PR), argumentou que o mecanismo é utilizado nos EUA e em outros países da Europa. Aqui, o congressista na melhor das hipóteses, registra a sua ignorância no assunto, porque isso não só não é verdade como a comparação com democracias saudáveis é só um argumento retórico sem sentido.
“A possibilidade de bloqueio de apps, serviços ou sites que o projeto brasileiro propõe é única”, afirma Rodriguez, da EFF. Nem  países com democracias latino-americanas disfuncionais como a Venezuela têm uma ferramenta de censura digital como a proposta, muito menos democracias mais sólidas.
Segundo Todd O’Boyle, diretor da ONG americana Common Cause, provisões que tentavam viabilizar esse tipo de controle, caíram nos EUA porque  tanto a pressão da opinião pública quanto o claro desrespeito da primeira emenda tornaram-as inviáveis. O Brasil tem disposições que garantem liberdade de expressão, mas tais detalhes correm o risco de cair na vala normativa mencionada acima, porque não temos um equivalente à primeira emenda que seja tão simples e que invalide qualquer disposição em contrário.
A proposta de Alex, na prática, permite que qualquer um que consiga a autorização judicial para retirada de um determinado conteúdo do ar, possa fazê-lo bloqueando totalmente o acesso ao serviço que o hospeda (pense num filme protegido por direito autoral hospedado no YouTube). Zeloso na proteção  “anti-pirataria” Alex também adicionou que o autor possa utilizar um mesmo mandado judicial para retirar um conteúdo “igual ou semelhante” (a ambigüidade aqui não é coincidência) indefinidas vezes. Aprovado na íntegra, a proposta pode tornar inviável o serviço de empresas menores que não têm um corpo legal robusto o suficiente para se defender, com penas de até 2 anos de reclusão. Grosso modo, a proposta facilita a repressão e torna a defesa mais difícil.
Assim como a EFF, o Comitê Gestor da Internet também viu o relatório final como lesivo à neutralidade de rede. “O bloqueio integral a um sítio ou aplicação de Internet é medida extrema que pode levar à fragmentação da rede. Trata-se de uma medida desproporcional capaz de comprometer a estabilidade, a segurança e a funcionalidade de toda a Internet”. A proteção à neutralidade de rede é clara no Marco Civil da Internet, mas ao contrário das legislações constitucionais minimalistas existentes nos EUA e na União Européia (que tem dois atos - Privacidade e Liberdade de Expressão - que salvaguardam os direitos individuais), a colcha de retalhos legal e a vagueza do projeto de lei abrem um precedente perigoso.
Em linhas gerais, o relatório (e a proposta que ele gerou) é, na prática, um ataque indireto à liberdade da expressão, porque com uma sentença judicial malfeita, o requerente pode tirar do ar sites e/ou serviços nos quais veja “atividade criminosa” . O projeto tenta se justificar como combate à pedofilia e outras atividades criminosas, mas ele mira outra coisa. Já há recursos possíveis para o combate às atividades ilícitas no sistema penal vigente, mas o lobby da “antipirataria” quer simplesmente um porrete mais fácil de usar e que lhe dê mais poder para peitar as grandes empresas de tecnologia e serviços. Marco Feliciano não brilhou na CPI como fez em outras tristes ocasiões, mas o relatório final faz jus ao seu conservadorismo ignorante, agnóstico. O Congresso deixou claro que o pastor nem precisa estar em todas as comissões de investigação. Já tem gente de sobra para corroer os direitos civis individuais.

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